terça-feira, julho 14, 2009

Não é que fosse mau-caráter ou cafajeste. Canalha, talvez. Mas não uma pessoa do mal. No mal sentido. A verdade é que nem ele mais sabia o que tinha acontecido, em que pedaço do caminho ele tinha se perdido, em que curva ele tinha virado ou não. E esse era seu problema. Não saber qual era o problema. Mas sabia com certeza a conseqüência dele. Ser uma pessoa fria, distante. Sem emoção, apesar de transbordá-las. A única saída que via era procurar ajuda. E foi o que resolveu fazer. Telefone na mão, mensagem enviada, cerveja marcada
Sabe o que é camarada, acho que parei de amar.
Ah, isso acontece. Há quanto tempo você ta com ela?
Sei lá, quase um ano.
Então, você enjoou. Normal. Todo homem enjoa depois de um tempo.
Enjoa de que, cara?
Da mulher. Você sempre sonhou em comer aquela gata. Aí, ta comendo. Começa a namorar porque quer comer ela pra sempre. E depois de duas semanas, ou um pouco mais, vai, posso estar exagerando, mas enfim... depois de um tempo você já quer comer a mulher do lado. Na verdade todas as mulheres de todos os lados. E se sente enfiado em um compromisso enfadonho, do tipo cinema, bala, casa, TV e sexo. Pior, sexo sem graça.
Mas o sexo é bom.
Sexo sempre é bom, porra. Mesmo quando é com a mulher que você já comeu um milhão de vezes. Mas não tem mais aquele fogo, aquela sensação de descoberta. Porra cara, o mundo é o que é pela sensação da descoberta. Se não fosse assim, o macaco nunca teria descido da árvore pra ver o que tinha embaixo, ninguém tinha saído da Europa, pior, você nunca teria comido outra mulher que não a sua primeira namorada.
Putz, nem vem com essa. A primeira vez foi horrível, a Aninha nem era tão boa assim de cama.
E quem é?
Eu. Hahahaahhaa. Olha só, me pede ai uma batata-frita com queijo e bacon que vou dar uma mijada.
Tá, vai lá.

Cerveja, amigo, batata-frita e conflitos existenciais. Uma bela combinação para acordar no sábado com uma dor de cabeça imensa. E a vontade de amar para sempre sua namoradinha. A mesma pela qual não sentia mais nada. O terror tomou seu corpo como uma onda. O medo de ser aquele velho rabugento que seu pai se tornara veio como nunca antes. Parecia uma sina da família, impossível de ser evitada. O cacete.

Mauricio?
Quem é?
Capo, cara. Tudo bem.
Capo? Caramba, quanto tempo. O que que você tem aprontado?
Nada demais. Liguei só pra saber se ainda tem o telefone daquela psicóloga que você ia na época da faculdade.
Tenho sim, peraí que vou pegar aqui na agenda.

Consultório psicológico, boa tarde.
Boa tarde, eu queria marcar uma consulta.
Primeira sessão?
Sim, senhora.
Que tal quinta as 19?
Tá ótimo.

Deu o nome e o endereço. Claro, ia ser pelo plano de saúde da firma. Alguma coisa tinha que valer a pena naquele antro de comedores de cu de executivos.


Ei amor.
...
É eu sei, hoje é terça.
...
Desde quando?
...
Desde domingo eu não te ligo? Mas te liguei ontem.
...
Não liguei?! Jura?
...
Claro que to brincando. Foi o trabalho, amor. Muito trabalho.
(e o fato de não te amar. Nem de lembrar que você existe, durante a maior parte do meu dia).
...
Tá bom. Saio daqui e te pego. Que filme mesmo?

Filme, jantar fora, sexo gostoso, mas sem fogo, beijo de boa-noite, despertador no dia seguinte. Tudo voltando ao normal. Ou quase tudo. O fogo tinha sumido do sexo, tudo bem. As revistas de mulher pelada, os sites na internet, sua tara por pés, essas coisas o deixavam louco e se masturbava toda noite morrendo de tesão por pés e rostos e bundas e bucetas diferentes sendo fodidas. Mas e o fogo por viver? E a comida que estava sempre sem graça? E as roupas que eram sempre as mesmas? E as ruas e as pessoas e os carros que não pareciam se mexer? E a falta de bom dia e boa noite no elevador? E seu completo desprezo por tudo e por todos, família, amigos, colegas de cerveja, colegas de trabalho, colegas do futebol.

Saiu, quinta, atrasado pra terapia. Tinha escondido de todos que pela primeira vez ia se entregar as suplicas de sua mãe e finalmente tentaria “se tratar”. O consultório era simples. Menos assustador que em filmes. A psicóloga, muito gentil. Deitou no divã, como achou que deveria fazer, apesar dela ter dito que poderia ficar onde quisesse do jeito que ficasse mais confortável.

Olá. Meu nome é Lorena.
Ei Lorena, eu tenho um problema.
Sim, todos temos. Muitos problemas.
Eu não sei mais amar.
É mesmo? Quer me contar mais sobre isso?
Acho que sim. Acho que não viria ate aqui se já não tivesse tomado essa decisão.
Então, pode começar.

Contou como estava se sentindo. Como era sensível, como chorava com músicas, como se emocionava com belos filmes, como gostava de cachorros e rinocerontes. E como não conseguia sentir mais nada por sua namorada, por sua mãe, por seus primos e amigos.
Contou que desde sua primeira namorada não conseguia mais se relacionar como um adulto com as mulheres, que começava a achar que elas só serviam para uma alivio momentâneo, na hora do gozo. Que dividir momentos era um saco. Que esperar era um saco, que levar e buscar e ter que perceber o novo penteado, a nova cor nas unhas era tudo um grande saco. Ia começar a falar outras coisas, muitas outras coisas, mas sabe como é, seu tempo acabou.
A gente pode marcar semana que vem, mesmo dia, mesmo horário.
Tá, pode ser.
Marcou. E não foi. Não acreditou na psicóloga. Pensou que como na maioria dos casos que conhecesse pudesse se apaixonar por ela. Mas depois daquela primeira sessão, só teve uma certeza, a de que nunca se apaixonaria por uma psicóloga em sua vida.

Foi para casa e ficou olhando a cidade pela janela. Pessoas que passavam de mãos dadas, casais felizes se abraçando, entrando e saindo de restaurantes, carros cheios de esperança às portas dos motéis. Gente como ele. Não, não como ele. Gente que não se pergunta, que não se descobre. Que deixa ir. Que vai. E quando vê, foi. Assim, sem ter certeza, sem ter sentido. Preferia não amar a se tornar mais um autômato daqueles.

Esqueceu de ligar para a namorada dois dias seguidos. Ela também não o procurou. Sentiu um alivio imenso e percebeu que não tinha mais como continuar com aquela farsa. Com aquela sua impossibilidade. Ligou no terceiro dia. Ela já meio sem emoção. Sabia o que aconteceria, chorou. Ele não. Sentiu-se muito mal, mas não conseguia demonstrar que aquilo estava sendo difícil. Não estava. Estava sendo ótimo. Ter sua vida de volta, todos os seus segundos a sua inteira disposição. Ficou enjoado assim que desligou o telefone. Correu para o banheiro mas não vomitou. Deitou e dormiu.

No dia seguinte, no trabalho, viu que precisava conversar. Telefone, amigo, cerveja.

Cara, terminei.
E essa voz de felicidade é por isso?
É. Não dava mais, não agüentava mais.
Que bom, assim pelo menos você se lembra dos amigos. Por falar em amigos, hoje é o aniversario do Manoel. Daqui a pouco o pessoal vai se encontrar lá no Bar do Mena. Vamos?
Passa aqui? Ou passo aí?

Os amigos, todos sem suas respectivas, estavam todos lá. Comemoraram o aniversário bebendo até não agüentarem mais. Alguns foram embora mais cedo, as esposas estavam esperando em casa. Outros ligaram dando alguma desculpa e continuaram a se embebedar. Só Capo estava livre, feliz, completo. E sem amar. Lá pelas tantas, os últimos bêbados resolveram ir a um show de strip-tease. Foram juntos, contando vantagens e histórias de transas fantásticas com mulheres fantásticas. Nenhuma com suas namoradas, suas mulheres, seus casos.

Na boate, as meninas cansadas dançavam para os muitos bêbados que enchiam a casa. A meia-luz iluminava mal estrias e celulites. A musica brega embalava homens de barba mal-feita e gravatas desamarradas que babavam em cima das moças já não tão belas. Algumas doses depois, decidiram ir embora. Foram todos, menos Capo. Ele resolveu ficar, aproveitar que não ligava para ninguém pela manhã, tarde ou noite. Resolveu comer uma puta. Já tinha bebido muito naquela noite. Estavam comemorando entre amigos o aniversario de um deles. Um qualquer. Já não importava muito. Queria gozar e não estava a fim de bater uma punheta no quarto, sentado bêbado na frente do computador. Ficou meio sem graça no começo. Ate que ela começou a conversar. Não tinha muito papo. Perguntou seu nome, o que fazia, se estava com problemas em casa. Ele não respondeu muito. Não queria conversar. Foram pro quarto. Ela tirou a roupa e o despiu em seguida, devagar, beijando seu corpo. O sexo começou tão sem graça quanto o que fazia em casa e só então, entre as cortinas dos álcool, conseguiu se situar. Olhou para a completa estranha embaixo do seu corpo, seu pau dentro dela. Que tipo de amor era aquele? Como ela podia se amar tanto, como dava pra seguir vivendo dia após dia? Que tipo de amor ela tinha por caras como ele, que pagavam por um pouco de sexo? Para sentir-se querido, poderoso, feliz? Como se doar para que estranhos a comessem, enfiassem o dedo em seu rabo, xingassem, suassem, gozassem e saíssem sem um beijo de boa noite? Sem um único beijo de boa noite. Não era pedir muito. Ele hesitou um segundo. Parou. Sentou na beirada da cama e começou a chorar. Ela entendeu. Claro que entendeu. Era só mais um cliente. Quantos já não haveriam feito isso?

Ela o deixou sozinho no quarto e foi para o banheiro. Ele se recompôs.Tirou da carteira umas notas e deixou em cima do criado-mudo. Ela saiu do banheiro, de banho tomado, cheirando a algum perfume forte. Os cabelos ainda molhados. Vestia uma robe de cetim vermelho, puído. Levou-o ate a porta. Ele se despediu com um pedido de desculpas, uma boa noite e um beijo. Andou, entre lagrimas, até seu carro. Dirigiu, entre lágrimas, até a sua casa. Deitou-se, entre lágrimas, e dormiu em paz. Ele tinha voltado a amar.

2 comentários:

Anônimo disse...

"no brasil, principalmente no brasil, a compulsão pela sedução é tão grande que algumas vezes, quando a 'caça' finalmente é alcançada, o 'caçador' já não dispõe mais de energias suficientes para levar completamente a cabo o teatro a que se propunha... será que o tesão já começa a ser interpretado como uma falta periclitante?"

[ezio flavio bazzo, as sutilezas do mau caratismo]

lembrei disso enquanto lia seu texto.
luciana

Patrícia Alcântara disse...

Sem reclamações sexistas... Mas pq os homens sempre são os enfadados na ficção?