terça-feira, julho 14, 2009

Devia fazer umas cinco semanas desde que Marcio tinha ido pescar pela última vez. Era uma coisa que adorava fazer. Pegar a estrada e ir para o Pantanal, alugar um espaço na chalana e mandar a isca para a água. Desta última vez, há umas cinco semanas atrás como vocês já sabem, Márcio tirou a sorte grande. Pescou um belo Dourado, que fez questão de congelar e levar para a casa. É que seus tios vinham visitá-lo e, nada mais hospitaleiro, do que oferecer uma bela peixada, ainda mais com aquele Dourado fresquíssimo, pescado por ele mesmo.

O vôo não se atrasara e no dia marcado, lá estavam eles na fila da esteira esperando para pegar as malas. Marcio reconheceu seus parentes, apesar do tempo que deixara marcas em seus rostos e chumaços de cabelos brancos em seu tio e de um vermelho pouco convincente nos de sua tia. Aeroporto, carro, garagem, elevador, casa.
Bem vindos à minha humilde residência.
Nossa, você está bem, que casa bonita. Tá vendo Norberto, eu disse que o Paulinho tinha que ter estudado essas coisas de computador. Olha como o Marcinho tá bem. Mas não, que menino teimoso, quis fazer direito, agora fica aí, sem passar na Ordem, tentando essa prova toda hora.
Deixa nosso filho, Virginia. Ele fez o que quis. Tá feliz.
Feliz, mas sem dinheiro. Onde já se viu...
Aham... Poxa tios, tava com muita saudade de vocês. Faz tanto tempo.
É, faz o que? Uns dez anos que a gente não se vê?
Por aí, tia. O Paulinho ainda tava na faculdade quando fui passar o verão na casa de vocês.
É, ai que época boa. Mas me conta, o que você tem feito da vida? Não casou, pelo jeito. Nem uma namoradinha?
Ih, tia a história é longa. Senta aí que eu conto.

***
Márcio contou sua história. A mudança pra Mato Grosso, o dinheiro que a firma economizou com seus programas de computador, as viagens para pescar no pantanal.
Inclusive, tenho uma surpresa para vocês. Pesquei um dourado lindo e vou preparar amanhã pra gente almoçar. Até chamei a empregada, pra me dar uma ajuda.

***

Blim Blom. Porta aberta, bom dia seu Márcio. Bom dia Ana. Meus tios foram dar uma volta pela cidade, comprar o jornal, ver umas vitrines. Tirei o peixe ontem de noite, deve estar descongelando. Ta ali em cima da pia. Vou tomar um banho e já venho te dizer o que eu quero fazer com o dourado.

Márcio vai para o banheiro. Liga o chuveiro. Espera a água esquentar e se joga debaixo da ducha, acordando para o dia que virá. Mas antes de terminar de passar o sabonete nos dois suvacos, escuta o grito vindo da cozinha. Torneira virada, água desligada, toalha enrolada, porta do banheiro aberta. O que foi Ana? Tudo bem?
Socorro!!! Seu Márcio vem aqui. Socorro!!!!
Márcio corre do banheiro para a cozinha. Quando vira o corredor e entra pela cozinha, para abruptamente. A toalha cai no chão. O Dourado, em cima da pia, respira e abana o rabo.
O peixe tá vivo?
Ana não responde, ela está encostada na parede, agachada e com as mãos em volta da cabeça.
É isso, Ana? O peixe tá vivo?
Sem resposta.
Fica calma. Pensei que ele tivesse morrido. Isso acontece, não fica assim não. A gente dá um jeito aqui, olha. A gente mata ele e prepara o almoço.
Ana não abre o olho nem se mexe. O dourado, em compensação, para de abanar o rabo.
Como assim, me matar e fazer o almoço? Tá maluco?
Dessa vez o grito veio do Marcio. O Dourado, o peixe, não só estava vivo como estava falando. E falando com ele.
E, por favor, dá pra você pegar essa toalha do chão? Não é muito agradável ficar olhando para um homem nu. Sou macho, se você não percebeu.
Marcio pega a toalha e se cobre. Ana continua na mesma posição.
Ana, não é? Seu nome é Ana. Não precisa ficar assim. Dourados não mordem. Quer dizer, mordemos se tiver isca. Mas sempre acabamos nessas geladeiras.
Ana aos poucos começa a olhar para o peixe.
Prometo que não vou te fazer nenhum mal, tá?
Ta, responde Ana, entre lágrimas de horror. Você deixa eu ir embora?
Claro, pode ir.
Ei. Quem tem que deixar ela ir embora aqui sou eu.
Que é isso Márcio? olha como ela está. Deixa a coitada ir.
Mas e eu? Quer dizer, e o almoço?
Você não vai mesmo vir com essa idéia de me matar, não é? Acho melhor botar logo uma água pra ferver e pegar o pacote de macarrão.

Ana se levanta, pega sua bolsa e sai sem nem ao menos se despedir. Márcio sabe que vai precisar encontrar outra empregada que possa ir aos fins de semana arrumar sua casa.

Tá, agora que ela foi embora, o que que eu faço?
Já falei, faz um macarrão. Tem molho bolonhesa congelado, lá no fundo do freezer. Eu sei, fiquei lá do lado dele um tempão. Por falar nisso... caramba hein. Cinco semanas congelado. Pensei que você tivesse esquecido de mim.
O dourado se debate e da pia vai para o chão da cozinha. De lá, começa a se mexer e andar pela cozinha. Depois passa para a sala e com outra debatida, senta no sofá.
Como é, não vem conversar comigo? Aproveita e liga a TV que vai começar o jogo do campeonato italiano.
Márcio sai da cozinha, liga a TV e vai para seu quarto. Toma um remédio pra dor de cabeça, um calmante e um gole da garrafa de uísque que guarda no armário para emergências. E volta para a sala.
Vem cá, você é mesmo um peixe?
Sou um dourado. Você que me pescou, devia saber.
Mas você fala.
E?
Nunca vi peixe falar.
Já tentou conversar com um antes?
Hum... não.
Pois é. Vai ver foi por isso que você nunca falou com outro antes.
O Milan atacava e um chute bateu na trave do Genoa.

Olha, a idéia do macarrão foi serio, viu. Se quer fazer um almoço é melhor descongelar o molho e colocar a água pra ferver.

Não foi muito fácil achar forças pra se levantar, já meio grogue do uísque com calmante. Mas o molho descongelou no micro-ondas e o macarrão ficou Al dente, como gostava. Seus tios não engoliram muito bem o porquê da mudança do prato principal.
O peixe tava estragado.
Mas não tava congelado? Nunca vi peixe congelado estragar.
Vai ver estragou no barco. Na viagem pra casa. Sei lá...

O Dourado tinha combinado ficar quieto. Desde que Marcio o deixasse em sua cama, com a TV ligada no canal de esportes. Precisava descansar um pouco. Não é fácil ficar cinco semanas congelado. Além do mais, queria ver o resumo da rodada do italiano. Durante o tempo congelado não teve como acompanhar os resultados do campeonato.

Quando seus tios finalmente foram dormir, Marcio resolveu dar um jeito na situação.
Voce não pode ficar aqui.
Mas foi você que me trouxe.
Sim, mas não pode.
E vou pra onde?
Sei lá. Pra rua.
Pra rua? Fazer o que? Pedir esmola? Quanto tempo você acha que eu posso ficar na rua sem ser assassinado por algum cão selvagem? Ou pior, por algum sem-teto faminto? É capaz de me comerem vivo.
Mas e então?
Como e então?
E então o que eu faço com você?
Me leva de volta pra casa.
Impossível. Ia ter que andar mais de 100 quilometros de carro, só pra te jogar num rio. Te jogo no rio daqui da cidade mesmo.
E me mata asfixiado. Já viu como ta poluída a água desse rio?
Bom, você não me dá escolha...
Me deixa aqui, vai. Só por um tempo. Quando seus tios forem embora eu vou também. Até lá, acho que seria legal você me apresentar a eles.

Os tios, apesar de acharem bem estranho a idéia de um peixe falante, logo se deram bem com ele. Tanto que adiaram a passagem e resolveram ficar mais alguns dias. Uns dez, ao todo. Vocês precisavam ver como se divertiam os três. O Dourado, uma flor de pessoa (Ok, nem flor, nem pessoa. Peixe). Conversava com Tio Norberto sobre pescarias durante quase todo o dia. Com Tia Noêmia fazia companhia nas horas do crochê, sempre elogiando os desenhos e as barras dos panos e toalhas, e na hora da novela. Apesar de não acompanhar por algum tempo a história do folhetim, logo tinha se inteirado da trama. E tinha lido os resumos dos capítulos de toda a semana, o que Tia Noêmia achava muita graça. Depois do jornal das dez, as partidas de gamão e cartas eram animadas. Muitas risadas e xícaras de chá. Marcio ouvia a chaleira apitar de duas a três vezes durante a madrugada. Já não conseguia dormir direito. Nem com calmantes e uísques. Suas noites viraram pesadelos acordados. O dourado e seus tios, como amigos de infância. Restava a ele cozinhar, lavar os pratos, servir o café. Na empresa já comentavam como seu rendimento havia caído. Não era mais o mesmo. Os programas davam problemas e mais problemas. Foi pego dormindo no expediente mais de duas vezes. Seu chefe já tinha conversado com ele na segunda e na quinta. E seus tios só iriam embora na outra quarta. O pior é que o peixe não dormia. E aos poucos começou a cheirar mal. Suas roupas, seus tênis, sua casa tinha um cheiro forte de peixe fora d’água. Os vizinhos já olhavam pra ele atravessado. No trabalho, acabou tendo uma conversa séria com o chefe que achou melhor dar uns dias para descasar. Mas se Marcio não voltasse bem, ele teria que mandá-lo embora.

A porta da casa abriu mais cedo. Era Marcio. Os tios e o dourado estranharam.
Mas já, tão cedo?
É. Me deram uns dias de folga. Olha, precisamos conversar.
Marcio se sentou e explicou a situação. Os tios, muito chateados, pediram desculpas. Não queriam atrapalhar a vida do sobrinho tão querido. Mas é que aqueles dias com o peixe tinham sido tão divertidos que eles nem perceberam. Concordaram em antecipar a passagem que já tinha sido adiada uma segunda vez. O peixe é que não falava nada. Só olhava, com seus olhos de peixe, sem piscar.
No dia seguinte, a despedida com muitas lágrimas e abraços. Foram-se os tios. Ficaram Marcio e o dourado.
Bom, foi legal enquanto eles estiveram aqui.
É. Mas visita, você sabe como é. É igual peixe. Depois de um tempo começa a feder.
Isso não foi nada bom de se ouvir.
É, eu sei. Vou me deitar. Amanhã começa uma nova empregada aqui. Preciso acordar cedo para mostrar o que ela tem que fazer. Boa noite.
Boa noite.

O dourado continuou na sala se divertindo com algum programa de fim de domingo. Marcio voltou, andando cuidadosamente, e se jogou em cima do peixe. A luta na chalana voltou a sua mente, o dourado se debatendo debaixo de suas mãos, a isca na água, a primeira visão do grande peixe. Em poucos momentos, o dourado estava dentro de uma sacola de plástico. Sem pensar duas vezes, abriu o freezer e jogou a sacola com o peixe lá dentro.

Fazia tempo não conseguia dormir tão bem. Sonhou com pescarias e peixes que não falavam. No dia seguinte a campainha tocou cedo. Marcio pulou da cama e abriu a porta para a nova empregada, Zulmira. Explicou como queria a casa limpa, como queria as roupas passadas e como queria o molho à bolonhesa para congelar.
Os potinhos com o molho, a senhora pode colocar dentro do freezer mesmo, ta vendo? Bem aqui, do lado do peixe.
Sim senhor, pode deixar.
Mas faz um favor pra mim. Não escreve nos potinhos, tá.
Tá, sim senhor.
É que eu não gosto que o peixe fique lendo o que é que tem dentro da minha geladeira.

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