quarta-feira, outubro 13, 2010

Antes aqui






A história está cheia de momentos em que apostar em mais do mesmo é o caminho mais seguro para o sucesso. O Soundgarden que o diga. Depois do fim da banda, alguns meses antes do que seria seu primeiro show no Brasil, cada integrante seguiu um caminho. O mais conhecido deles, o vocalista Chris Cornell, lançou um disco solo e depois formou o Audioslave, com os músicos do também recém-finado Rage Against The Machine. No entanto, nem o poder das notas dos ex-RATM nem o alcance vocal de Cornell pareceram afinados um com o outro. E o que é pior, deixando os fãs, órfãos de ambas, com gostinho de quero mais.

O tempo, ah, o tempo. O Audioslave hoje é passado. O Rage está de volta com sua formação original e fez um show histórico no festival SWU. O Soundgarden também se reuniu e voltou à ativa, depois de um longo hiato, lançando sua primeira coletânea, com algumas músicas inéditas. Assim matam a saudade dos fãs com criações nunca dantes ouvidas, e, ao mesmo tempo, fazem um belo apanhado do trabalho de anos de estrada, para uma nova geração que apenas ouviu falar do movimento grunge e no barulho criado por Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden e Cia.

As primeiras faixas do disco lembram os primeiros eps, de uma banda ainda em busca de sua identidade. Dessa fase, destaque para a música Fopp. Logo depois, o disco que fez o Soundgarden explodir, Badmotorfinger é destrinchado. Várias faixas mostram o que de melhor a banda fez, em um dos discos mais emblemáticos do grunge do início dos anos 90. Outshined, Jesus Christ Pose e Rusty Cage fazem parte desse momento. Do álbum Superunknown vem a balada Black Hole Sun e Burden in My Hand. Sim, mais do mesmo. Mas é tamanha a qualidade que você até se pergunta se não vale a pena dar essa chance para eles.

E a resposta vem no mesmo disco, com as inéditas que evocam a década passada. Mesmo não sendo músicas novas, mas sobras das sessões de gravação, as composições mostram que o que é bom sempre será bom, como comprovamos em Black Rain, o single do lançamento. Se antes a espera era para saber se a banda ainda voltaria a se reunir, agora ficamos na expectativa de um novo disco cheio de inéditas. E que venha logo, porque os fãs já não aguentam mais esperar.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Lá estava eu, no super com mamãe.
Era uma segunda pós eleição onde todos estão felizes e esperançosos por dias melhores que não virão. De repente passa uma mulher alta, cabelos até o ombro, rosto de menina. O rosto da menina era o mesmo que conheci quando o rosto de menina ainda combinava com o corpo de menina. Ela devia ser algumas séries mais nova, umas duas ou três se tudo isso. Ou seriam mais? Com o passar dos anos algumas coisas vão se perdendo por aí.
Já ia puxando minha mãe pelo braço para apontar para a menina que estudou comigo quando me apercebi da pequena figura que caminhava à frente de seu carrinho de compras. Não mais que 3 ou 4 anos. Um menino, cara e corpo de menino, cabelo de cuia, com aquela cara de infância. Ela falava com ele com um carinho, com uma ternura e ao mesmo tempo com a autoridade que só uma mãe sabe usar.
Fiquei sem reação, pois já não poderia mostrar para a minha mãe a menina que estudou comigo, do pouco que ainda restava na minha memória. Não combinaria dizer: Olha aquela menina, estudei com ela. Também não achei por bem falar: Olhe aquela mulher ou ainda olha aquela mãe.
Por falta do que falar, me calei.

E vi a menina que estudou comigo passar e seguir adiante. Com o menino ao lado dela.
Dois pesos...

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.


Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.