quarta-feira, julho 29, 2009

Estava deitado quando olhou para seus pés. Não era uma parte do corpo que visitava com freqüência. Seu rosto, talvez pelo espelho na parede do banheiro, era mais comum a seus olhos. Até mesmo a barriga, da qual gostava de acompanhar o progresso e regresso de centímetros com o passar dos dias no entrar e sair de dietas, era uma amiga mais presente do que os pés. Mas eles sempre estiveram lá para apoiá-lo. Nos melhores e nos piores momentos, sempre fizeram com que enfrentasse seus problemas de pé. E não são esses os melhores amigos? Os que nunca nos abandonam, os que fazem questão de estar próximos quando precisamos? E seus pés sempre estiveram lá desde o começo, suportando-o quando nem sua mãe mais o suportava.

Olhou para seus pés e viu que eles começavam a se cansar. Não tinham mais a vitalidade da infância quando corriam sem solas por ruas descalças, topando a bola e ignorando pedrinhas e pedrões. Não eram mais a nadadeira de outrora, sempre a postos para impulsionar uma entrada suicida numa vaga assustadora. Eram pés que andavam, agora, dentro de meias e calçados apertados. Pés que já não tinham mais o desenho inicial, com dedos tortos por apertos do tempo, calos em pedaços que antes não sobressaiam e solas marcadas. Seus dedos, no entanto, foram o que mais o assustaram. Neles pode ver a pele já ressecada, parecendo sobrar em cima da carne e do osso. Uma pequena flexão de músculos, um dobrar de dedos, deu à pele a sua cara amiga de sempre. Lisa, enxuta, reta como deveria ser, como deveria estar. O tensionamento não durou para sempre, como era de se esperar. E as rugas que envelheciam seus dedos voltaram.

Não se sentia velho. Na verdade, depois da separação, até se sentia mais vivo, mais moleque. A distância dos filhos, das pequenas discussões do dia a dia, dos novos cortes de cabelo da esposa, agora ex, deram um sopro de novidade em sua vida. Mas e seus pés? E seus dedos? Como puderam entregar sua idade assim, de maneira tão explícita? Porque logo eles?
Não teve duvidas e ligou para a clínica que sua esposa, agora ex, visitava semanalmente. Pelo menos para isso eles serviriam. Marcou uma data, uma hora, um momento. E lá se foi, atrás da solução para os pés, que com tantas rugas, já chamava carinhosamente de pés de galinha. Na clinica, colocou botox, fez hidratação, massagem, drenagem, esfoliação. Fez tudo o que podia. Sentiu-se bem, relaxou e até ensaiou um cochilo. Mas na hora de ir embora, lá estavam as rugas nos pés.

Em desespero pensou em tomar medidas extremas. Passagem para Bariloche, neve, esqui. Esquecer os dedos no frio, hipotermia, amputação. Adeus dedos, adeus rugas, adeus idade. Seus dias passaram a ser tomados por idéias. Precisava acabar com o problema dos dedos. Com aquelas rugas. Com aquela pele velha, com certeza, coisa da sua ex-mulher. Uma última lembrança, uma ultima sacanagem da bruxa velha. Depois de algum tempo, já não saia mais de casa. Pelo menos não sem seus sapatos bem fechados, escondendo do mundo aqueles horrorosos dedos enferrujados. E resolveu dar um basta naquilo. Parou de olhar para seus pés. Usava meias em casa, tomava banho sem os óculos, para que a miopia o cegasse, evitava olhar para baixo quando caminhava pela praia.

E um dia, assim como descobriu sua velhice, esqueceu-a. Simplesmente esqueceu do pé, dos dedos, da idade. Culpa da semana cheia, de reuniões intermináveis, da nova amante, dos jantares de negócio, da visita dos pais. Talvez a visita dos pais. Viu na mãe e no pai, nos pés deles, a vida que um dia tinha perdido nos seus próprios. Teve que ver os pés desgastados pelo tempo de seus pais para ter certeza de que o seu estava bem, um pouco marcado, é verdade, mas até que levando em consideração sua idade, parecia bem. Legal, é isso. Passou a andar por aí de sandálias e guardou as meias nas gavetas da roupa de frio.

Um dia acordou. Estava atrasado para o trabalho. Correu para o banho. Depois ainda se enxugando se olhou no espelho do banheiro. Sorriu. E percebeu no canto dos olhos umas ruguinhas estranhas que, certeza absoluta, não estavam ali antes. Começou a se preocupar. Precisava encontrar um jeito de tirar aquelas rugas dali. Onde já se viu, mostrar a idade assim, pra todo mundo.

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