sexta-feira, novembro 13, 2009

sexta-feira 13.

Continho fresco pra vocês.


***


Era um sábado à tarde. Eu tinha acabado de sair do supermercado. Às vezes deixo para ir ao supermercado aos sábados a tarde. Não sei por quê. É um daqueles dias em que geralmente não se tem nada para fazer. O carrinho cheio de carnes para o churrasco de aniversário que iria acontecer dali a duas semanas, as cervejas, a vodka e todas as drogas envolvendo gordura e álcool que podem ser compradas em um supermercado num sábado a tarde.
Na verdade, nem sei porque me lembro desses detalhes. Parece que foi a tanto tempo atrás. E, não sei a quanto tempo foi, nem mesmo se esse sábado aconteceu. Estava meio quente, é verdade. Mas ar-condicionado é feito pra isso mesmo, desviar a nossa atenção de quanto estamos destruindo o planeta, de como derretemos nossas calotas polares, de como abrimos, escancaramos o buraco na camada de ozônio, de quantos poucos anos de sobrevivência em nossa querida rocha ainda temos. Ou tínhamos.
Estacionamento. Compras no carro, movido à combustível fóssil, claro. Menos econômico, mas o modelo do meu carro é muito mais bonito e caro do que o dos caras que pararam ao meu lado. Carros pequenos, econômicos, populares. No supermercado todos são populares. Ate olharem pro que eu compro. De qualquer modo, sai do super e vi que o transito estava parado. Não entendi muito bem. O rodízio funcionava bem, cheguei com tanta facilidade ate aqui. Problemas, justo no momento de voltar para minha casa, para meu refugio. Nada se movia. Bom, nada é exagero. Algumas pessoas andavam de um lado para o outro, algumas correndo. Outras caiam de joelhos no chão. Não entendi muito bem. Sai do carro, olhei para os lados. Carros com portas abertas, aparelhos de som falando sozinhos, para ninguém. Carros ligados, com chaves nas ignições. O que está acontecendo. E que calor, caramba. Mas também, não tem uma nuvem sequer no céu...

O céu. O que é isso? O que aconteceu com o céu? Três sóis, cinco luas, as estrelas todas brilhando em plena luz do dia. Mais um sol nascendo no horizonte. Uma dança de corpos celestes, um pandemônio inexplicável. Estrelas cadentes, cometas, dia e noite juntos, numa luz quente e numa escuridão estranhamente clara. Comecei a me sentir mal. Mal, muito mal. Um peso sem igual parecia me empurrar para o chão. Senti minhas costas arquearem e, de repente, estava deitado no asfalto, no meio da rua, no meio de carros abandonados, de barulhos e silêncios desconfortáveis. Simplesmente assim. Sem conseguir me mover. Uma revolta tomou conta do meu corpo, do meu estomago. Senti a comida subindo devagar pelo meu esôfago, ate chegar em minha boca e, quente e ácida, ser vomitada comigo ainda deitado. O calor parecia ainda mais insuportável e por alguns instantes pensei que estava tendo um infarto. O peso passou. Consegui me levantar, ainda sujo com meu vomito. Umas pessoas também se levantavam. Como se todas tivessem sentido o mesmo peso. Como se todos estivéssemos sendo julgados. Olhei ao redor e vi uma mulher com seu filho pequeno, de mãos dadas e chorando, um senhor de cabeça branca e sua esposa, um casal de namorados, eu e meu carro. Quem está aí? Vi um vulto. Tinha absoluta certeza de que alguém me olhava de longe, me mirava e dizia coisas a meu respeito. Por um instante pensei em xingar a velha que abraçava seu marido, de cabeça branca. Gritar fofoqueira, gritar para me deixar em paz. Me deixem em paz. O que eu fiz? O que é isso, cacete?
Saí correndo por entre pessoas desesperadas, carros sem vida, asfalto e grama, tentando chegar em minha casa ou perto dela, o que fosse. Pensei nos meus discos, nas minhas camisas que estavam secando, na minha mãe, talvez pensasse em alguma namorada se tivesse uma. Uma pausa aqui para explicar que, apesar dos quarenta e poucos, sou um homem muito bonito. Freqüento academia, tenho um ótimo emprego em uma revista semanal e sou solteiro convicto. Nunca vi a razão de se casar com uma mulher que cinco anos depois irá se tornar uma versão mais jovem da sua sogra. Sem falar que as estagiarias da revista, recém saídas da faculdade, sempre caem de amores por mim e um corpo de 19 a 23 anos é o mais perto que um homem pode chegar do paraíso. Ou era o que eu pensava ate então.
Ainda alguns quilômetros longe de casa, parei para respirar. Tive a certeza de ter visto outro vulto. E dessa vez estava certo. Realmente era um vulto, ou parecia ser um. Ou algo que não saberia descrever sem soar crente demais, mas algo como um espírito. Uma energia que flutuava por sobre as ruas, varias delas, forças, diremos assim. Uma pareceu se aproximar de mim. Sem rosto, sem forma, como se fosse uma nuvem que é impossível de se ver de tão alta que esta, mas da qual se sente a chuva caindo. Sua chuva eram palavras, mas não do tipo que estamos acostumados. Palavras de silêncio. Palavras como chuva que sabemos estar nos molhando, mesmo quando nem conseguimos ver os pingos. Palavras que não entendia e que não tive como responder. O silenciar aconteceu em todos os cantos. Os pássaros pararam de cantar, os motores e as rádios se calaram, minha garganta era de um vazio absoluto. Como um apagar de luzes, mas de som. A escuridão tomou conta de meus ouvidos. E o peso voltou com ainda mais força me arremessando ao chão. Entendi de repente que existiam respostas e que eu tive acesso a elas durante toda a minha vida. Existia um livro, um guia, uma verdade. As coisas todas estavam nele, os segredos estavam revelados, as duvidas explicadas, as mentiras desmentidas. O vulto tomou forma de palavras, não escritas, mas palavras que lia dentro de minha cabeça. Palavras como em um livro. Neste livro que eu já tinha visto antes tantas vezes, mas que nunca li. O peso sumiu mais uma vez e pude me levantar. Não consegui mais correr. Não pude mais me mexer. Minha ultima reação foi esperar, e assim, me sentei no meio da rua. Olhando para o silencio de sois e luas movendo-se ferozmente nos céu , de estrelas que iam e vinham, que brilhavam e apagavam, comecei a chorar. Um choro, não de desespero, mas de tristeza profunda. Como se minha alma se revirasse, pedindo para sair de dentro de mim, como se estivesse sendo deixado por alguém que me acompanhava por muito tempo, talvez como a sensação de perder um filho ou se tornar viúvo, dando adeus ao grande amor de sua vida.
O clarão então veio e tudo ficou escuro. A escuridão tomou conta de tudo o que eu olhava. Tão negra e desoladora que meus olhos não se acostumaram, nunca se acostumariam. Levantei-me e tateando ainda tentei caminhar alguns passos. Só para ouvir algo, um grito, uma tuba, um barulho tão intenso e opressor que me curvei sobre mim mesmo e vomitei o resto de comida que talvez ainda tivesse na barriga, ou só bílis mesmo.
E o tempo, assim como tudo começou, cessou. Não havia mais tempo, mais som, mais luz, mais motivos, mais vida. Deitei-me e deixei ser levado. Não sei quanto tempo se passou, não sei mais o que seria o tempo, senti uma mão quente acariciando meus cabelos. Abri os olhos e vi uma mulher. Senti sua luz. Seu toque. Sua vontade de ajudar. Que triste que não pudemos acreditar. Centenas e centenas de pessoas, como ela, passavam por mim, em suas luzes próprias, graciosos e numa sensação de tamanha paz como se pudessem ter tornado tudo algo melhor. Senti um pouco de inveja. De vontade de estar lá, de desistir das respostas que procurei por tanto tempo em tantos livros, em tantas noites acordados, em tantos copos e garrafas de uísque, em tantos frascos de remédios, em tantas pílulas, em tantos corpos . O que eu iria fazer com elas, de qualquer forma? Pra que saber as respostas, quando tudo o que eu queria agora era poder me levantar, para cair de joelhos e gritar a todo pulmão, Aleluia?
E então percebi que era assim que iria ficar. Para sempre. Deitado no silêncio, no escuro, na eternidade, no asfalto frio de uma cidade vazia.

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