quinta-feira, dezembro 13, 2007

Era aquela a noite, ele tinha decidido. Karla já estava na dele fazia algum tempo. Eles conversavam, conversavam, conversavam. O tempo voava e não parecia ser justo medir em horas o que passavam juntos. Talvez em risadas, em sorrisos, em assuntos longos e momentos gostosos. Gabriel, mesmo assim, sabia do risco que corria. As conversas aproximaram os dois de tal maneira que um passo em falso poderia significar não somente um fora da menina pela qual ele estava apaixonado, mas também, e muito pior, a perda da amizade de Karla. Mas, pior ainda do que muito pior era a falta do passo definitivo. E sem tomar a iniciativa, Gabriel via, dia após dia, o amor que jurava sentir por Karla se transformar aos poucos em amizade. E isso, seria um adeus a qualquer possibilidade de concretizar os planos de casamento, família feliz, filhos e férias em Bariloche, feitos durante tantas madrugadas sozinhas em seu quarto.

A visita para um trabalho da faculdade estava marcada havia uns dias. O disco estava preparado na vitrola. A agulha, sedenta por tocar alguns clássicos para ouvidos enamorados. Na geladeira da república, além das garrafas de água e cerveja, um Martini, bem docinho, que Karla adorava bebericar quando saia com as amigas. Os livros de veterinária, sobre a mesa, não entregavam o esquema armado. Se no final das contas, não surgisse a oportunidade, bastava fecha-los e agradecer mais uma ajuda na hora de estudar. Ou então, agradecer o que de verdade acontecia entre eles, mais um encontro mágico entre duas pessoas que se admiravam e se nutriam mutuamente de pensamentos, palavras e desejos.

A campainha toca. Gabriel voa para a porta, onde do outro lado, ela o espera. Seu perfume não respeita as convenções e, sem ser convidado, invade, por frestas e buracos na fechadura, a sala de estar. Ainda tonto, Gabriel deixa um oi escapar. O abraço é quente e o perfume ainda mais próximo, invade não só suas narinas, mas cada pedaço de seu corpo, sua mente, seu coração.

Senta aí, vou pegar os livros.

Karla não teve problema em achar o pufe mais macio da pequena sala. Ela já tinha tido tempo o suficiente para conhecer cada pedaço da república. Uma quase moradora, de tanto tempo que passava lá. Era assim desde que conhecera Gabriel. Aquele garoto sentado num canto da sala, com óculos de aro grosso emoldurando olhos cheios de uma voracidade intelectual em uma cara de moleque. Com a linda boca pequena e sua barba falha. Desde o primeiro dia, a identificação com seu novo colega de faculdade foi imediata, intensa e correspondida.

Gabriel chega e se joga no pufe ao lado do dela. Os livros, largados, voam para o chão.
Pronto, vou ler para você.
E assim, começa a revelar o capítulo, palavra após palavra. Um mantra discorrendo sobre músculos e ossos de cavalos, hipnotizando Karla que já não sabia mais se estava ouvindo a voz de Gabriel ou se viajava em ondas sonoras passeando por rincões desconhecidos do mundo irreal de sua cabeça. As frases iam, as páginas eram viradas rapidamente, o tempo mais uma vez deixava de existir em segundos, minutos e horas.
A hipnose foi interrompida por uma pergunta. Ela ainda meio inebriada, respondeu. Mas o que respondeu? O que ele tinha perguntado?

Era agora, sabia. Não podia perder mais nenhum segundo. Ler esse capítulo inteiro tinha tomado um tempo precioso. Ela respondeu que sim, podiam ficar ouvindo música. A velha vitrola, pronta para rodar, foi ligada. O som da agulha vasculhando os sulcos do LP apareceu nos falantes. O disco do Roberto Carlos começou, aos poucos a tomar cada pedaço da sala. Karla riu. Roberto Carlos? Presta atenção na letra. Roberto Carlos é um gênio. Risos. Palavras saiam de suas bocas como abelhas em busca do mel. A doçura de cada um só era percebida pelo outro. Mel em forma de perguntas e respostas, mel em forma de sorrisos e movimentos. Karla sabia que estava se entregando. Gabriel sentia que aquela perna dobrada noventa graus, apontando para o céu, como uma criança feliz, entregava-a para ele. Fim do primeiro ato.

O lado B do disco começou a tocar. O Martini já esquentava nos copos. O desejo fervia em ambos os corpos. Os toques começaram a acontecer de forma mais desinibida, como dois bons amigos se tocam quando estão felizes, rindo da vida que parece ser sempre leve ao lado de quem se gosta. Era agora, sofria. Gabriel tocou a mão de Karla. Mas milésimos de segundos depois do toque que selaria para sempre a tentativa, o ataque frontal, antes que qualquer coisa pudesse acontecer, antes mesmo que Karla pudesse perceber que aquele não era um toque comum, um toque estranho atrapalha a música, o Martini, a risada. É meu celular, deixa eu atender. Estaca zero.

Nossa, tá tardão. Preciso ir, mesmo. Ela pega a bolsa, calça sua sandália, ajeita o cabelo e olha para Gabriel, perdido ainda entre pufes e olhares mágicos. Eu te levo lá embaixo. Aproveito e como um cachorro-quente na esquina. O Martini me deu fome.
E, descalço, sai de seu mundo perfeito. Roberto se cala, os copos vão para a pia e cheios de água, afogam a esperança que quase se materializava dentro deles momentos antes.
A porta já não se abria para o perfume, mas para deixá-lo ir por completo. Não foi, não deu, nunca mais vai acontecer. E Karla chama o elevador. E chama Gabriel, como num suplício, com um olhar. Ele se desvia, temendo as conseqüências.

É agora, eu sei. Karla não precisa pensar mais. Em direção a Gabriel vão boca, cheiro, corpo, mãos, pensamentos. Sei que vou me arrepender, mas...
A frase termina em um beijo, um leve toque de lábios. Suas bocas enfim se encontram. E os dois percebem que isso não era nada demais. Não era um passo maior que a perna. Não era algo a se temer porque, antes das bocas, suas almas haviam se tocado, seus corações haviam estado juntos por muito tempo.

E então, vamos comer o cachorro-quente?
Ela riu.
Mas você está descalço...
Eu adoro andar descalço.

Ainda hoje Gabriel e Karla comem cachorros-quentes juntos, tarde da noite, como se fosse aquele primeiro dia. E Gabriel, desde então, só anda descalço.

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