segunda-feira, dezembro 10, 2007

Engraçado como algumas escolhas que você faz, algumas atitudes que você toma ainda são capazes de surpreender a você mesmo. Não se surpreender com sua maneira de viver, admito, deve ser um passo para a morte. Porque deixar a rotina virar tudo o que você tem, quando a vida, tão curtinha, é tudo menos rotina?

*****

Ana acordou sozinho no meio da noite. Olhou para o lado e viu o espaço vazio em sua cama de casal. Sua agora, depois da separação. A cama, antes, era deles, dos dois.

O travesseiro, engraçado, continuava lá. Era fofo e alto, do jeito que ela não gostava. Mas Ana ainda não tinha encontrado forças para tirá-lo da cama. Como se estivesse esperando que Lúcio um dia ainda voltasse, mesmo após tanto tempo de divórcio. O travesseiro, que ela não usava, era um mimo, um alento nas noites escuras e frias, onde a solidão batia forte. Um abraço e um cheiro era tudo o que precisava para encontrar a paz.

O antigo short que Lúcio usava para dormir também ainda estava no armário, dobrado, próximo aos cobertores. Esse short inclusive já havia causado algumas cenas constrangedoras, como na vez que Ana levou um outro homem para dormir em sua casa. Ao abrir o armário para pegar as cobertas, o outro se assustou e perguntou evidentemente amedrontado se ela era casada. Naquela noite, as lágrimas vieram com muito mais intensidade do que o gozo.

Os porta-retratos, vazios, em cima dos criados-mudos esperavam uma oportunidade de serem preenchidos, como seu coração, que já havia tempos não conseguia se sentir cheio e pleno. Lúcio fazia falta, até mesmo nos porta-retratos.

Ana ligou o abajur e um pequeno facho de luz fria iluminou seu lado da cama. A mesma luz que incomodava tanto Lúcio em seu sono agora poderia ficar ligada a noite toda se assim ela quisesse. Sua vida era uma cartilha onde ela mesma havia escrito as regras. Mas a primeira delas, esquecer seu maior amor e seguir vivendo, não tinha sido levada a efeito. Ana era uma refém de sua casa, de sua cama, desse travesseiro que trazia tantas gotas de suor e de lágrimas.

Suas mãos buscaram na primeira gaveta do criado-mudo, um monte de fotos antigas. Eram fotos bobas, suas e de Lúcio, sorrindo, como há tempos já não fazia. Em momentos leves, abraçados, se beijando, brincando para o filme, para a lente. Pedaços de uma vida impressos em papel, em suas memórias. Ana viu e reviu todas as fotos. A sensação não era de tristeza, era, se tanto, de remorso. Remorso por ter sido tão feliz e não percebido. Remorso por ter tomado uma atitude impensada e trocado a felicidade que parecia tão comum e casual, a ponto de enjoar, por umas noites com a luz acesa.

Ana colocou as fotos de volta na gaveta e se levantou. Com apenas um fiapo de luz, se esgueirou pela casa até a cozinha. A luz da geladeira iluminou o breu que penetrava não só pela casa afora, mas Ana adentro. Entre folhas de alface, tomates e cenouras, uma jarra com suco de uva. Um copo, um gole.
Ana deixa o frio do líquido escorrer. Dentro sente seu calor ir embora. Ela não sabe se febre, se desconforto. O caminho para a cama é automático, passando por estantes agora vazias, entre sombras e escuridões. Caminhando passo a passo, sem ver para onde, mas com a certeza de seu destino. O quarto e sua luz fria, fria como agora Ana se sentia, se aproxima. Passo após passo, chega à cama. Ela se deita, se cobre. Fecha os olhos.

Ana se vira de um lado para o outro, se ajeita, se aconchega. Abre os olhos. O travesseiro ainda está lá. Pela primeira vez, seus braços buscam o travesseiro vizinho para descansar sua cabeça. O conforto não é o mesmo. Ela só sente estranheza, distância. Ana fecha os olhos mais um vez e, suspirando, pensa em como seria bom se o travesseiro de Lúcio trouxesse com ele um sonho feliz. Ana e Lúcio juntos, comendo peixe ao lado do rio. Ana e Lúcio juntos rindo de uma comédia boba na TV. Ana e Lúcio dividindo um sorvete. Ana enfim dorme tranqüila.

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