segunda-feira, outubro 16, 2006

Quente o dia hoje, não?



É. Esquentou.



O hoje em questão era uma segunda-feira. O dia tinha começado normal. Despertador, café, um pequeno pedaço do jornal, banho, roupas e elevador. Ela parecia ter acabado de acordar. Seus olhos ainda estavam pequenos em seu rosto redondo. Seu cabelo, comprido, ainda estava um pouco molhado. Seu cheiro misturava um pouco do shampoo com a tintura, a explicação para um negro tão intenso, que provavelmente tinha aplicado no fim de semana. Não sabia seu nome. Possivelmente ela também não sabia o meu. Éramos vizinhos. A única coisa que nos ligava era uma conta em comum chamada de taxa de condomínio. Isso e alguns encontros randômicos no elevador, a caminho da garagem.


(Silêncio)

Será que continua assim a semana toda, hein?

É, parece.

É sempre assim. A semana toda quente e a gente no escritório. No fim de semana que dá pra pegar praia, chove.


Abri um sorriso. Só queria parecer simpático. Hoje em dia é complicado viver em um edifício. Eles são sempre muito altos, os apartamentos são cada vez mais apertados e os vizinhos cada vez mais numerosos. Seu espaço individual é invadido a todo tempo por estranhos que escolheram o mesmo prédio que você para morar. E o pior, a recíproca é verdadeira. Nos vemos invadindo o espaço do outro a todo instante. O mínimo a se fazer, nessas horas, é tentar parecer simpático. A viagem do 13° andar até a garagem não dura mais que um minuto. Tempo o suficiente para um bom dia e uma pequena conversa sobre o tempo.


A luz falha uma vez. Nos entreolhamos. O elevador dá um pequeno tranco. Seu rosto parece tomado pelo terror. Agora a luz pisca intensamente até se apagar. Tudo isso dura cinco segundos, no máximo. Uma eternidade. Como tudo dentro de um elevador com um estranho.


Xi, acabou a luz.

Ai, nem fala. Morro de medo de elevador. Sua voz parecia mesmo amedrontada.

Bobeira, daqui a pouco a luz volta. Enquanto isso a gente espera. E mais, se não voltar é só tocar o alarme. Logo o Seu Moreira vem abrir aqui a porta.


Antes de concluir a frase, o alarme soou ferozmente. Um zumbido intenso, como se um milhão de abelhas africanas tivessem entrado em minha cabeça. E assim ficou por algum tempo. Como vocês devem presumir, uma eternidade.


Calma, calma. Eles já ouviram o alarme.

Será? Não é melhor continuar tocando?

Não. Tá bom. Eles já ouviram, tenho certeza.


Até não tinha tanta certeza, mas não ia agüentar um novo enxame de abelhas em minha cabeça. O que me assustava não era a idéia de ficar preso no elevador. Era ficar preso com outra pessoa. E mais, outra pessoa que não conhecia. E que, ainda por cima, tinha medo de elevador. Bom, pensei, vou puxar assunto, tentar mantê-la com a cabeça ocupada. O que menos queria era alguém em pânico dividindo comigo um espaço de 1 metro e 30 por 1 metro e 30.


E então? O tempo, né?

O que que tem? A quanto tempo a gente tá aqui preso?

Não, não esse tempo. O tempo lá fora.

Aqui tá ficando quente. Ai meu Deus, será que a gente está ficando sem ar? Por isso está esquentando? Tá sentindo uma falta de ar também?

Não, eu tô tranqüilo.

Ai... ai...


Ela começou a gemer de dor. E a chorar baixinho. Não deixou de ser engraçado vê- la tentar esconder o choro. Num elevador. Talvez vergonha de mostrar uma fraqueza, coisa tão íntima, a um estranho. Não devíamos ser tão distantes. Moramos no mesmo prédio, na mesma rua. Se conhecer neste caso passa a ser um acaso. Como agora.


O seu nome é...

Manuela.

Então, Manuela, o meu é Edgar. Olha só, você não precisa ficar assim. Tá tudo tranqüilo, daqui a pouco abrem a porta. Olha, não me leve a mal, mas se você quiser, posso te dar um abraço.


Ela não disse nada. Nesta altura dos acontecimentos, já via nitidamente no escuro. Minhas pupilas haviam feito seu trabalho com perfeição, se abrindo para as míminas incidências luminosas do elevador parado, pelo jeito da escuridão quase completa, entre dois andares. Vi seu corpo se mexer, lentamente, em direção ao meu. Estendi meus braços e pude abraçá-la, assim que sua cabeça tocou meu peito. Senti seus soluços, e suas lágrimas, poucas, molhando minha camisa. Seu coração estava disparado. Ou seria o meu? Pulsações que já se confundiam. Seu choro, seu perfume. Passei minha mão por seus cabelos, ainda um pouco úmidos. Ela sentiu. Eu senti. Olhamos um para o outro. E assim ficamos, por poucos segundos. A realidade do cubículo, revertida, fazia o tempo que antes não passava, voar, escapando por entre soluços e lágrimas, como fios de cabelo molhados em mãos inseguras. Pude prever o que aconteceria em seguida em um flash, mas o flash real foi o das lâmpadas se acendendo. Manuela, instintivamente, como um criança pega em flagrante fazendo alguma coisa proibida, se afastou rapidamente. Foi para seu lado do elevador, que começou a se mover lentamente, até o próximo andar. Lá, abriu suas portas e nos despejou novamente no mundo real. Ela olhou para mim, rapidamente.



Daqui vou de escadas.

Tudo bem.

Tchau.

Tchau.


Ela deu uns dois passos e se voltou para dentro do elevador, para dentro de mim.


Obrigada.


As portas se fecharam novamente. Dessa vez, sozinho, não tive muito tempo para pensar. O tempo só parece não andar no elevador quando o dividimos com um estranho.

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