terça-feira, novembro 06, 2007

Maria e não Maria

Maria era uma menina normal. Tinha seus 20 e poucos anos, como na música de Fábio Jr. E apesar da pouca idade, já havia sentido mais, muito mais, do que qualquer pessoa de sua idade. A Maria, essa que está sentada atrás da mesa, pensando na vida, já era mãe de um menino de 4 anos. Ou pelo menos seria mãe de um menino com essa idade, se aquele outro carro, dirigido por um motorista bêbado não tivesse invadido a contramão e atingido em cheio o carro de seu marido. Seria se, em vez de colocar o garoto no banco da frente para fazer uma graça com ele, seu marido o tivesse colocado, como manda o figurino, na cadeirinha. Seria se, em vez de pedir para seu marido ir buscar seu garoto na escolinha, ela própria tivesse ido.

Faz cinco meses, mais ou menos. Para Maria foi ontem. E hoje, ela não existe mais.
Em cima da mesa, está um pequeno bolo, com 4 velas acesas. Maria não tem forças nem fôlego para apagá-las. Elas se consomem rapidamente, manchando o glacê branco do bolo de coco, o preferido de Maurício, seu filho, com gotas azuis de cera de vela derretida.

Lá fora o tempo está nublado. Assim como Maria, por dentro. As velas se apagam. Morrem, ao fim. Morrem enfim. Maria se levanta e anda em direção à janela, a tempo de ver as primeiras gotas da chuva que se anunciava atingirem o chão quente da rua, um pouco movimentada, que ficava em frente ao velho prédio, onde morava. A água caia do céu com força, assim como escorria do rosto de Maria.

Um senhor, careca, tenta se proteger da chuva com o jornal. Uma mãe dá a mão para sua filha e correm para debaixo de uma marquise. Um moleque olha para cima, recebendo aquelas gotas no rosto de braços abertos, como se fossem uma dádiva divina. Talvez sejam mesmo. Poucos os que conseguem entender e enxergar a beleza nas coisas mais simples da vida. Maria pensa nisso e vê em sua mente, os dias que seu filho fazia pirraça se recusando a comer, rindo dela. Ela se lembra de Maurício comendo brigadeiro nas festinhas dos amigos, como deve ter comido horas antes, minutos antes do acidente. O sorriso dele aparece entre outras lembranças banais, daquelas que sempre deixamos passar sem dar importância, mas que no fim das contas são as que mais contam sobre nossa vida, nossa rotina. A rotina que, para Maria, praticamente deixou de existir.

A cama de Maurício ainda estava feita. Sua roupa continuava passada, guardada no armarinho dele. E assim continuariam por tanto tempo quanto Maria quisesse. O café da manhã já não era mais preparado, a mesa deixou de ser posta. A poeira acabava se acumulando nos cantos da casa. “Pra que limpar?”, pensava Maria. Se pudesse, ela colocaria a chuva que cai forte dentro de sua casa para lavar e levar tudo de lá. As lembranças, a cama arrumada de Maurício, o seu vazio, a sua saudade.

Maria se levanta e, passo após passo, chega à geladeira. Um copo se enche de água e, pesadamente, ela coloca sua cadeira de frente para a janela. Maria se senta e olha para fora. Levanta o copo e o coloca, cheio de água, em frente a sua visão. Embaçado, tudo parece ter menos efeito sobre ela. A chuva, a janela, sua casa. Com poucos goles, o copo inteiro vai corpo adentro. A visão de Maria continua embaçada. Culpa das lágrimas, provavelmente. Seu corpo pesa, sua mente divaga. Agora Maria já sente sono. Um sono bom, que parece abraçá-la, pronto para levar sua vida em direção à paz. Não há porque lutar. Maria se deita no chão, próxima à janela. Tenta encontrar, em seus últimos olhares, o bolo. Ele está em cima da mesa, aceso. As quatro velas queimam. Maurício está feliz. Todos terminam de cantar parabéns e Maurício apaga as velas. Maria faz questão de abraçar e beijar seu filho. Sentir seu cheiro. Como é bom poder reencontrar quem se ama. Se soubesse que seria bom assim, Maria com certeza teria tomado todos aqueles remédios de uma só vez muito antes. Mas a espera valeu a pena. Pelo menos para Maria que agora não precisa mais se preocupar em ter que dormir sozinha, numa casa antes sempre cheia de vida.

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