segunda-feira, junho 19, 2017

Antes aqui

Queimada

O triste incêndio florestal que aconteceu, não faz muito tempo, em Portugal deixou um rastro de mortes. Dentre elas, as de passageiros e motoristas, pegos desprevenidos em seus carros, criaram um sentimento de impotência tamanha que o resultado foi uma comoção geral. O fato foi capa e notícia principal dos maiores jornais e portais do mundo. Mas foi um texto, em especial, que me chamou a atenção.

Do sítio Expresso.pt, ele veio, escrito pelo jornalista Ricardo Marques. Como tudo em nossa pátria-mãe, carregando nos tons de sofrimento. Mas, também, carregado de beleza. Sim, um texto sobre a tragédia, sobre a – agora conhecida como – estrada da morte, sobre as 62 vítimas (e contando). E, sobretudo, sobre a nossa capacidade de transformar, usando apenas as palavras, um fato aterrorador em poesia. Não há beleza nas mortes, mas há beleza e respeito profundo no texto e em como ele trata o acontecido. É, acima de tudo, uma obra de arte utilizando o jornalismo como base de lançamento.

Não há relato das mortes, não há o realismo chocante, esfregado em sua cara, como acabamos nos acostumando. Não há só o fato. Há, acima de tudo, a experiência humana. E o português.

O português, esta língua que nos foi imposta, foi transformado de tal maneira no Brasil que criamos nossa própria língua. O português brasileiro. Cortamos relações com a matriz, inventamos palavras e enfiamos gírias até onde não era possível. Criamos nossa identidade. Mas a língua original, quando quer, sabe ser arrebatadora. Como nos versos sofridos de um fado.

Usada com maestria, esta gramática e suas palavras, algumas já esquecidas por aqui, são de fazer chorar. É o retorno à origem, o filho que envelhece e passa a entender o papel de seu pai, que já não quer se rebelar, mas aproveitar os momentos restantes juntos.

É como se a queimada tivesse derrubado pontes e destruído estradas e, ainda assim, de certa forma, servido para nos aproximar, um pouquinho que seja, de nossa língua em comum.



“Dizem que é uma estrada, mas não passa de uma ausência. Como se vida tivesse sido sugada de repente e o caminho entre Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera não passasse agora de uma coisa que já foi. Dezena e meia de quilómetros reduzidos a nada. Há ramos caídos, fios de eletricidade tombados e, na berma, um homem que pede lume. “Já viu a ironia disto”, pergunta, enquanto acende uma cigarrilha. Depois segue o seu caminho, em direção a um dos epicentros do pior incêndio florestal que atingiu Portugal.

Caminha devagar, pelo meio da estrada, fumando a cigarrilha. “Está a ver esta marca negra no chão? É de um carro. Havia dezenas deles aqui”, diz. “Nunca mais nos vamos esquecer deste dia, sabe? Houve um homem que conseguiu sair do carro e fugir a correr pelo meio das chamas. Salvou-se, mas foi o único”. A história dos outros, dos que não conseguiram escapar, está nos destroços. Neste troço da EN236-1, bem perto de uma terra chamada Barraca da Boavista - onde há uma rua chamada Alegria e, nessa rua, está um carro todo queimado.

O homem fuma e caminha. Veio da Venezuela há uns anos, conta, como se fosse obrigado a dizer alguma coisa. O silêncio faz muito barulho quando não existe mais nada à volta. São vinte passos até aos carros queimados no meio da estrada. “Não tiveram hipótese”, diz. Nesta estrada morreram 47 pessoas, encurraladas pelas chamas. A terra cheira a queimado, o fumo esconde o céu e o sol, mas o homem caminha. Passa um reboque que, lentamente, começa a carregar o que resta de um carro. Há mais dois ali mesmo, outros três na estrada de baixo, mais de uma dezena, entre veículos ligeiros e camiões, até Castanheira. Não é muito diferente no caminho até Figueiró.

A viagem é feita devagar - há demasiados obstáculos na estrada. Na rádio, o primeiro-ministro admite que o número pode subir nas próximas horas. Não é difícil perceber porquê. Ao longo da estrada sucedem-se os desvios para aldeias e lugares, mas na verdade são caminhos que levam a mais destruição. Pelo meio dessas estradas secundárias existem caminhos de terra, ainda mais secundários. E por toda a serra há casas isoladas. “Este número vai subir muito”, arrisca o homem da cigarrilha, que segue a pé em direção a Castanheira. “Isto foi um horror.”

Fica para trás e, alguns quilómetros adiante, numa curva, um carro dos bombeiros está avariado, com um pneu destruido, junto a um carro incendiado. O céu fica mais negro, vê-se fumo ao longe. Uma coluna de bombeiros passa devagar e os nomes escritos a branco no lado das viaturas dão outra dimensão à tragedia: Paço de Arcos, Barcarena, Algés, Santo Tirso… Passam e acenam a quem está à beira da estrada. A tristeza a saudar o desespero. Vem depois um enorme camião do exército, que transporta uma retroescavadora - e este é o sinal do amanhã. Os trabalhos de limpeza e desobstrução da via já estão em curso e, à medida que as autoridades vão entrando pelos caminhos, ninguém acredita que tragam boas notícias.





Em Castanheira, numa rotunda no fim do caminho mais triste de Portugal, há um moinho de água que nunca para de girar.”

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